"É preciso superar a epistemologia colonial", diz Gersem Baniwa
Antropólogo indígena falou sobre os desafios de se construir uma educação baseada no reconhecimento de outros saberes
Texto e fotos: Patrícia da Veiga
Não é possível falar em educação intercultural sem antes questionar a base epistemológica que define os processos formativos. Para tanto, é urgente romper com uma maneira única de ver o mundo, de pensar as experiências entre os seres vivos e de produzir conhecimento. Esta foi a defesa de Gersem José dos Santos Luciano, indígena da etnia Baniwa, filósofo, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Ele esteve em Goiânia na última quarta-feira (26/7) para participar do III Congresso Internacional Formação em Educação Intercultural e Práticas de Descolonização na América Latina. “Para falar em educação intercultural, de fato, é preciso reconhecer sociedades interculturais, no plural”, afirmou.
Gersem Baniwa durante conferência realizada na última quarta-feira (26/7)
Para Baniwa, uma forma única, padronizada e hegemônica de pensar rege a educação e a produção acadêmica, o que corresponde a uma epistemologia forjada pela Ciência Moderna no contexto da colonização de territórios, povos e culturas, iniciada no século XV e ainda não cessada. Trata-se de uma herança que perdura “nos corações e nas mentes”, segundo o professor: “essa herança da colonialidade está expressa de diferentes formas e tempos por meio do racismo e de um modo de pensamento baseado no evolucionismo que, por sua vez, hierarquiza, categoriza, elabora e processa seletivamente pessoas, grupos, sociedades”.
A “epistemologia colonial”, portanto, seria marcada por uma referência antropocêntrica e etnocêntrica que, em primeiro lugar, separa os seres humanos da natureza, hierarquizando-os e tornando-os superiores aos demais seres e, em segundo lugar, apresenta uma compreensão ancorada na legitimação da violência e no apagamento da memória e das culturas de povos não-brancos e não-ocidentais. “É preciso superar a base de conhecimento da cultura colonial, marcada pelo racismo, pela injustiça cognitiva e por todas as formas de desigualdade social, cultural e econômica”, defendeu.
Na conferência intitulada “A Gramática das Teorias Interculturais e o Império das Epistemologias Coloniais na Formação Superior”, o professor partiu de três premissas para desenvolver seus argumentos: em primeiro lugar, Baniwa assumiu a “postura filosófica e cosmológica” da diversidade, reconhecendo a possibilidade de múltiplas experiências “no mundo e com o mundo” e não somente a experiência branca; em segundo lugar, propôs levar em conta as consequências da globalização que, segundo ele, apesar de catalisar e expandir a colonialidade, apresenta contradições que podem ser profícuas ao surgimento de novas mentalidades; por fim, apresentou como elementar o exercício de entender e contextualizar o papel histórico da política e da cultura colonizadoras para, então, buscar “brechas para novas sociedades”.
A partir de um longo raciocínio, ele apresentou sua proposta radical: a transgressão, que se daria no plano da mentalidade para depois se dar na forma, tendo a perspectiva indígena como direcionadora. “A cultura colonial não aceita de forma alguma que até hoje não há sinais de superação dos povos originários. O indígena é considerado um ser inassimilável pela cultura dominante. Aquele que não adere, que não se entrega. Por isso, indesejável. Nesse sentido que o modo de vida dos indígenas, se não servir como alternativa, ao menos é outra forma de viver”, afirmou.
Possibilidades
Gersem Baniwa apresentou algumas possibilidades de superar a epistemologia colonial e construir uma educação intercultural que valorize o diálogo entre saberes, sem hierarquizá-los. Uma delas é a pesquisa de pedagogias pré-coloniais. “Para as populações indígenas e ameríndias, muito mais importante que o conteúdo é a forma, como aprender e o que fazer com o conhecimento”, ressaltou. Outra possibilidade é restabelecer cosmovisões que não mais separem o humano do natural e nem compreendam o mundo somente a partir do humano. “Nas perspectivas indígenas e ameríndias, a noção de humano é relativa”, completou. Segundo o professor, em países como México, Bolívia e Equador, muitas teorias já estariam sendo desenvolvidas considerando essa proposta de ruptura. Uma terceira é, no processo formativo, enxergar os indígenas não como indivíduos, mas sim como povos coletivos.
Perfil
Gerson Baniwa é natural de São Gabriel da Cachoeira (AM), graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM, 1995), mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB, 2006) e doutor em Antropologia pela mesma instituição (2010). Foi secretário municipal de educação de São Gabriel da Cachoeira, co-fundador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e coordenador geral de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC).
Evento
O III Congresso Internacional Formação em Educação Intercultural e Práticas de Descolonização na América Latina foi promovido pela UFG, em parceria com a Rede de Formadores em Educação Intercultural para América Latina (Red FEIAL). A programação contou ainda com o I Congresso Internacional sobre Patrimônio Cultural e Educação e o VIII Seminário Pensar Direitos Humanos, realizados pelo Museu Antropológico da UFG, pelo Núcleo Takinahaky de Formação de Professores Indígenas e pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos da UFG. As atividades foram encerradas na última sexta-feira (29/7), no Centro de Cultura e Eventos Professor Ricardo Freua Bufáiçal, com a conferência “Educação própria e intercultural em estados latino-Americanos cercados pelo neoliberalismo”, ministrada por Maria Bertely Busquets, docente e investigadora mexicana.
Professores e pesquisadores indígenas de várias etnias acompanharam a programação do congresso
Diversas autoridades prestigiaram o evento e participaram da mesa de abertura
Fonte: Ascom UFG
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