Reportagem Tulio

Em 01/11/13 12:40.


CULTURA E LATINIDADE


As veias (ainda) abertas da América Latina

Festivais têm o objetivo de aproximar os países latino-americanos. Arte e cultura podem ajudar a diminuir as fronteiras.


Por Túlio Moreira

 

Uma vez por ano, a Universidade Federal de Goiás (UFG) é visitada por estudantes de diversos países da América Latina. Todos compartilham o interesse pelo cinema, e viajam até Goiânia, no Brasil Central, com o objetivo de entender, discutir e produzir arte. O Perro Loco – Festival de Cinema Universitário Latino-Americano é um projeto tocado pelos próprios estudantes. Nasceu como uma tentativa de romper as barreiras da produção cinematográfica no ambiente acadêmico. Com o passar do tempo, tornou-se um coletivo de estudantes ávidos em divulgar os prazeres da cinefilia.


Festivais universitários não são novidade no Brasil. De norte a sul do país, estudantes do Ensino Superior desenvolvem eventos com o intuito de difundir a produção acadêmica. Contudo, o que diferencia o Perro Loco é o enfoque latino-americano: a principal diretriz do festival é promover a aproximação do Brasil com seus vizinhos. A preocupação dos estudantes/organizadores do Perro Loco denota um impasse histórico, que trata da dicotomia entre proximidade geográfica e distanciamento cultural das nações latino-americanas.


O cinema é uma ferramenta indispensável para possibilitar a aproximação, acreditam os organizadores do festival. O Perro Loco, que terá sua terceira edição em 2009, é uma oportunidade ímpar de intercâmbio de idéias com pessoas de países bem diferentes entre si. Este ano, o festival ocorre de 25 a 30 de agosto, e exibirá produções universitárias de nove países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Uruguai e Venezuela.


A presença de estrangeiros caminhando pelo Câmpus Samambaia da UFG causa surpresa e espanto nos estudantes goianos. Essa reação também comprova a existência de barreiras culturais entre os hermanos latinos. Danilo Camilo, estudante de Jornalismo da UFG e integrante do coletivo que organiza o festival, explica que a proposta do Perro Loco é promover e aprofundar o debate sobre a América Latina em Goiânia. “Queremos mostrar para os universitários goianienses que, bem perto de nós, existem países com uma cultura muito rica e que pode ser acessível, caso haja interesse.”

 

 

De acordo com Danilo, o Perro Loco faz um trabalho de “formiguinha”, procurando despertar o público local e mostrar uma possibilidade de integração por meio do cinema. Ele conta que a equipe do festival percebe, muitas vezes, que o Brasil está distante da América Latina. Existe uma afinidade muito maior com os países latinos da Europa, como Portugal, Espanha e França. Para Danilo Camilo, houve, nas últimas décadas, uma dominação muito forte da cultura norte-americana e da cultura européia. “É por isso que preferimos assistir a filmes estadunidenses, franceses ou italianos, e deixamos de lado as obras mexicanas ou argentinas, por exemplo”, opina o estudante.


A cineasta argentina Patricia Gualpa integra a organização do Anima – Festival Internacional de Animação de Córdoba. Ela veio a Goiânia para participar do segundo Perro Loco, em 2008. De acordo com Patricia, o principal desafio para a integração cultural na América Latina é a ausência de diálogos e programas sólidos que incentivem o intercâmbio e o compartilhamento de produtos culturais, como filmes, livros e músicas. “O distanciamento atinge não apenas a área cultural. Existe desconhecimento sobre política, economia e história entre os países da América Latina”, afirma a cineasta.


Patricia Gualpa é convicta de que, enquanto ferramenta cultural, o cinema – que reflete a realidade, os sonhos e a identidade de um povo – pode integrar a comunidade latino-americana. “Muitas vezes, filmes brasileiros mostram problemas comuns também ao Chile ou à Bolívia, por exemplo. O cinema consegue revelar a trajetória histórica que une os povos do continente.”

 


O produtor cultural Fernando Rosa, editor do site Senhor F (www.senhorf.com.br), aposta em outra área – a música – para promover a integração latino-americana. Desde sua criação, em 1998, a revista on line Senhor F deu atenção ao rock sul-americano. A partir de 2009, o portal passou a ter uma linha editorial voltada para a divulgação da produção ibero-americana (incluindo aí Portugal e Espanha). De acordo com Fernando Rosa, o objetivo é estimular o intercâmbio, como acontece no festival El Mapa de Todos, que ele organiza anualmente em Brasília.


El Mapa de Todos apresenta artistas ibero-americanos e promove debates acerca das barreiras culturais e geográficas entre os países de fala hispânica e lusófona. O festival foi batizado a partir de versos de uma canção do uruguaio Daniel Viglietti (“Yo quiero romper mi mapa, / formar el mapa de todos”). Além de mostrar novas propostas e diferentes estilos dos músicos ibero-americanos, o festival pretende gerar a troca de experiências e discutir a origem cultural comum entre todos esses povos.


Fernando Rosa destaca a proximidade da produção musical entre os países latino-americanos: “As preocupações existenciais, sociais e políticas têm similaridade. Os artistas, por conta das circunstâncias – as ditaduras em especial – viveram experiências semelhantes.” O produtor cultural afirma ainda que, com a difusão da internet, artistas e público podem estabelecer relações mais diretas, permitindo mais circulação pela América Latina. Segundo ele, como extensão da conexão virtual, os músicos começam a participar de festivais, que ajudam a divulgar o trabalho em diferentes regiões.


A existência de dois idiomas – espanhol e português – ainda é apontada por muitos como a principal causa do distanciamento cultural entre os países da América Latina. Fernando Rosa acha estranho que o idioma seja considerado uma barreira. Para ele, o mesmo não ocorre em relação ao inglês, cuja propagação não é questionada, mesmo com sua maior dificuldade de compreensão. “Acredito que o que dificulta a aproximação é a questão ideológica, uma histórica submissão cultural aos países centrais, particularmente aos Estados Unidos.”


Danilo Camilo, do festival Perro Loco, aponta outras barreiras para o intercâmbio cultural. Ele cita a dificuldade na distribuição e comercialização de filmes, o que acontece também com outros produtos culturais, como espetáculos teatrais, apresentações musicais, discos e livros. Para Danilo, os governos precisam desenvolver políticas públicas que incentivem essa troca e eliminem barreiras.

 


Sobre sua participação no segundo Perro Loco, em Goiânia, a argentina Patricia Gualpa afirma que o festival permitiu o intercâmbio entre realizadores de cinema e estudantes universitários. “Foi um acontecimento muito importante para a comunidade local, já que abriu as portas da América Latina e possibilitou a reflexão sobre o que somos”. Ela conta que a principal vantagem de viajar pela América Latina é a oportunidade de compartilhar experiências. “Percorrer cidades diferentes nos dá a chance de enxergar a identidade cultural que une toda a América Latina”.


Iniciativas como El Mapa de Todos e o Perro Loco conseguem diminuir o afastamento histórico dos países latino-americanos. Partindo da premissa de que a arte, aliada à cultura popular, pode romper barreiras físicas e ideológicas, esses projetos apontam para um futuro em que as veias (ainda) abertas desse continente extraordinário jorrarão diálogo e união, afastando de uma vez por todas a submissão e o desconhecimento.