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Educar para o diálogo é promover os direitos humanos

On 30/11/12 01:03 .
Solon Viola, coordenador do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), fala sobre a relação entre direitos humanos e cotidiano da população brasileira

Patrícia da Veiga

Fotos: Thamara Fagury


Na tarde de quarta-feira (28/11), ocasião em que a UFG anunciou para 2013 a realização do V Colóquio Interamericano de Educação e Direitos Humanos, foi promovida mais uma edição do projeto de extensão “Ciclo de Estudos e Debates sobre Democracia e Direitos Humanos”. Realizado há três anos, o projeto conta com reuniões esporádicas para que os integrantes do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos da UFG (NDH) discutam entre si e com a comunidade temas pertinentes à área.

Neste mês de novembro, o evento convidou nomes nacionais e internacionais para falar sobre a “Educação em Direitos Humanos na América Latina”. Participaram pesquisadores como Mónica Fernández, coordenadora da Rede Interamericana de Educação em Direitos Humanos (RIED) e professora da Universidad Nacional de Quilmes, Solon Viola, coordenador do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH) e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e Aida Monteiro, pioneira na área e docente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). De acordo com a coordenadora do NDH, Vilma Machado, foi um Ciclo de Estudos “especial”.

Na ocasião, a reportagem do Portal UFG conversou com Solon Viola, que descreveu a trajetória das iniciativas de educação em direitos humanos no Brasil, bem como explicou brevemente a evolução normativa e institucional da área, que atualmente conta com um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e muito em breve será legitimada também por diretrizes curriculares.

O caminho da institucionalização da educação em direitos humanos está sendo traçado para que, em escolas e universidades, sejam desenvolvidas experiências e metodologias de formação tendo como referência o diálogo e o respeito. “A partir das diversas culturas, podemos pensar em um projeto de mundo que seja baseado na dimensão de que cada ser humano é um ser de direitos”, afirmou o professor.

Solon Viola possui graduação, mestrado e doutorado em História e atua no programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Os principais temas em atua são: direitos humanos, cidadania, movimentos sociais, educação e práticas pedagógicas. Acompanhe a íntegra da entrevista.


Portal UFG – O que marca o início da educação para os direitos humanos no Brasil?

Solon Viola – Direito humano e sociedade brasileira são duas coisas muitos estranhas. Em sua gênese, a sociedade brasileira não tem muitos direitos, mas sim privilégios muito grandes de poucos e carências muito grandes da maioria. Para essa maioria, é negado o direito, inclusive, como perspectiva de vida. Veja que a grande mídia, por exemplo, fala que direito humano é para defender bandido. Sendo assim, o direito humano começa a aparecer como algo importante para a sociedade brasileira muito recentemente, durante a ditadura militar, em razão dos crimes contra a humanidade que se praticavam nesse período: tortura, sequestro, prisão arbitrária, desaparecimento de corpos, mortes, atos de terrorismo contra a sociedade. Foi então que o direito humano chegou à sociedade brasileira, para defender a vida das pessoas que estavam sendo perseguidas pelo governo ilegítimo dos militares. Em meio a isso, surgiu a ideia de que a população precisava saber o que é direito humano. E a única forma de fazer isso seria por meio da educação. A grande mídia, por exemplo, que alcança muita gente, sempre foi contra. Aliás, ainda hoje não dá para contar com as empresas de comunicação. Nessa época, o Brasil tinha uma experiência muito bonita de educação popular, feita no Centro de Cultura Popular e com os Movimentos de Educação de Base. Os educadores em direitos humanos foram recuperar um pouco essas metodologias pensando no conteúdo fundamentais dos direitos humanos. O que é um direito humano? E o que é direito humano para uma sociedade como essa, onde há muita fome, muita gente não tem onde morar, muita gente não se reconhece como ser humano, onde as pessoas podem ser humilhadas de qualquer jeito? Então, se começou a juntar essas duas coisas: aquilo que é o grande conteúdo universal dos direitos humanos e aquilo que é a nossa experiência histórica de uma educação que é capaz de ouvir, de entender as experiências de diferentes culturas.


Portal UFG – Essa trajetória teve continuidade?

Solon Viola – O segundo marco da educação em direitos humanos se dá com a democratização, em meados de 1980 e 1990. Aquilo que era feito meio escondido, na “catacumba”, passa a existir abertamente. Deste modo, são desenvolvidas experiências em todo o Brasil, mas especialmente em alguns lugares: em São Paulo, durante a gestão de Heloísa Erundina, quando Paulo Freire foi secretário de Educação, e em Pernambuco, no governo do Miguel Arraes, com a Aida Monteiro à frente da pasta de Educação. Esses foram os primeiros passos para o desenvolvimento de um projeto institucional de educação em direitos humanos. Em seguida, foram realizadas atividades na Paraíba, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. No início dos anos de 1990, foi criada a Rede Brasileira de Direitos Humanos. Essa rede fez atividades Brasil afora, aproveitando a primeira grande oportunidade de discussão sobre isso na sociedade. Contudo, essas iniciativas não chegaram a atingir o sistema formal de ensino. Em 2003, no primeiro ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva, foi criado o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, que elabora um Plano Nacional. Esse plano foi feito, primeiramente, como uma proposta a ser debatida no país. O documento foi finalizado depois desse processo de escuta e passou a servir como uma orientação para as políticas públicas de áreas como ensino superior, ensino fundamental, mídia, justiça e segurança pública. As repercussões do plano foram mais efetivas do que as iniciativas de tempos anteriores. Por exemplo, hoje estamos em um evento do Núcleo de Direitos Humanos da UFG; semana passada eu estava em um evento do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ambos impulsionados por esse plano.

 

 

Solon Viola menciona Aida Monteiro como uma das pioneiras nos projetos de educação em direitos humanos. Integrantes do CNEDH, ambos dividiram a fala durante o Ciclo de Debates

 


Porta UFG – Em que momento surgem as Diretrizes nacionais de Educação em Direitos Humanos (DNEDH)?

Solon Viola – A constituição das Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos (DNEDH) é outro marco que necessitamos olhar com atenção. Trata-se de uma proposta que o Comitê fez ao Ministério da Educação e ao Conselho Nacional de Educação e que imaginávamos que seria difícil de ser implantada. No entanto, nos receberam muito bem e fizeram uma proposta envolvendo todo o sistema de ensino, do fundamental à universidade. Assim, a diferença do plano para as diretrizes é que essas têm valor de lei, são orientadoras para o sistema de ensino brasileiro, assim como os Parâmetros Curriculares Nacionais.


Portal UFG – Isso significa que os currículos da educação vão mudar?

Solon Viola – Nas diretrizes há determinações sobre o sistema nacional de ensino: orienta sobre a criação de núcleos de estudo, cria disciplinas de direitos humanos nas universidades e sugere conteúdos para serem tratados no ensino fundamental. Mas as ações previstas nas diretrizes não são fechadas, podendo ser disciplinares e transversais. O que é uma preocupação que o comitê tem. Há iniciativas interessantes sendo desenvolvidas, mas há certo receio de que direito humano vire moda e que tudo passe a ser direito humano. Aí, tudo o que foi um avanço passa a ser um problema. Por exemplo, um movimento que diz que direito humano é para humano direito. É um movimento da burguesia carioca, que conta com ator da Globo. Isso é um equívoco. Direito humano ou é para todos ou para ninguém. Não pode discriminar. Se é para “humano direito” não é direito humano, é privilégio. Aí eu tenho dúvida porque como a cultura do direito humano não existe, tem de ser construída, e ainda tem de combater a cultura do preconceito que está muito arraigada. Às vezes se pode pensar que está fazendo direito humano e está fazendo moral e cívica. Isso é a negação do conhecimento. Por isso as diretrizes são importantes.


Portal UFG – Quais temas podem ser trabalhados em um programa de educação para os direitos humanos?

Solon Viola – No mundo moderno, o direito humano surge como uma tríade: liberdade, igualdade e fraternidade. No Brasil, não resolvemos essa tríade. Ainda somos uma sociedade profundamente desigual e exatamente por isso alguns têm privilégios e a grande maioria não tem direito. Quando se pensa em alimentar a população, há pessoas que reclamam. Quando se pensa em plano de moradia digna para todos, há quem discorde. Isso significa que não estamos preparados. Questões fundamentais da condição de vida humana e digna, no nosso país, não estão resolvidas. Assim sendo, me parece que um conteúdo fundamental no Brasil é a tríade. Afinal, se a desigualdade prevalece, a liberdade não existe. Há quem não tenha recurso para se locomover, andar de ônibus na cidade, por exemplo. Contudo, não estamos no século 18, mas sim no século 21. Nesse ínterim surgiram novas questões. Por exemplo, uma igualdade fundamental é a igualdade entre gêneros, uma liberdade fundamental são as escolhas individuais, todas as que você puder imaginar. Essas dimensões não estavam no século 18, foram postas agora. Outro exemplo, vocês estão em uma região de população originária muito marcada, não é? Nos EUA, ao proclamarem a declaração dos direitos humanos deles, os povos indígenas não estavam incluídos. Era uma declaração para os povos brancos. Atualmente, não podemos pensar em direito humano sem incluir os povos originários, os povos que formaram a primeira riqueza brasileira no período colonial. Nota-se, com isso, que a tríade carrega alguns elementos que são peça-chave no tempo contemporâneo. Outro tema: mesmo no século 20, quando da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda não eram alarmantes os problemas com a sobrevivência ambiental do planeta. Agora, é urgente. As populações culturalmente desaparecem na medida em que o ambiente é destruído. Então, a humanidade vai ter de escolher entre preservar uma cultura e fazer, por exemplo, uma usina ou um investimento industrial. São escolhas que precisam ser presididas pela dimensão dos direitos humanos.


Portal UFG – E o direito à memória?

Solon Viola – A minha filha, na escola, mostrava em seus livros didáticos de história um calendário com datas e pessoas. Coitadinha, odiou história! Ensinar desse jeito, imagino, não é responsabilidade unicamente da professora. Quem deu esse conteúdo para a professora? Esse conteúdo é a negação da história, é o culto aos grandes homens. Isso está também nas ruas: a Praça Castelo Branco, o Hospital Emílio Médici, a Escola Costa e Silva. O mundo não se faz pelos grandes homens, mas sim pela humanidade toda. Então, essa escolha pelos nomes apaga a verdade da memória. Nós apagamos das novas gerações a história da escravidão, por exemplo. Digo que apagamos no sentido de eliminar o registro da população africana que foi transportada para cá. Apagamos os povos indígenas e sua cultura. Por certo, há na floresta ervas medicinais que a humanidade perdeu porque o povo que conhecia essas ervas foi dizimado. Nós cometemos genocídio no Paraguai e em Canudos. Muito recentemente, na segunda metade do século passado, outra vez cometemos genocídio, cometemos crimes contra a integridade da humanidade. E não sabemos. Tanto que alguns nomes que citei nomeiam praças, hospitais. A sociedade brasileira precisa encontrar-se consigo para resolver o passado. Se eu mantenho o passado esquecido, o passado está toda hora me chamando de retorno, por isso apelamos para o direito à memória. Veja que algumas práticas que negam a condição humana e que vieram daquele momento continuam acontecendo. As impunidades dos criminosos da época repercutem e continuam nos criminosos de agora. Enquanto você não souber o que ocorreu, o fantasma está ao seu redor.

 

Solon Viola: as escolhas sociais devem ser guiadas pela dimensão dos direitos humanos

Quelle: Ascom/UFG

Kategorien: Desafio