Simpósio analisa disputas das narrativas em tempos de pandemia
Das narrativas oficiais do Estado às vozes invisibilizadas, encontro promoveu a reflexão da construção dos discursos no Brasil
Carolina Melo
Os palestrantes do Simpósio Ciência Arte e Educação da última sexta-feira (12/6) ilustraram a presença diversa, apesar de muitas vezes silenciada, das vozes do Brasil. Durante o encontro, a cientista social, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mulher, Esther Solano, apresentou as disputas de narrativas na política institucional. O ambientalista, pesquisador e líder indígena, Ailton Krenak, fez o resgate do silenciamento histórico das comunidades originárias do Brasil. E o jornalista, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e negro, Juarez Xavier, apresentou dados sobre a cobertura da mídia brasileira. Das narrativas oficiais do Estado às vozes criminalizadas, o encontro promoveu a reflexão dos diferentes discursos presentes no Brasil de ontem e de hoje.
Promovido pela UFG, em parceria com as instituições públicas de ensino superior de Goiás, a live do painel “Informação e Política na Pandemia: narrativas em conflito”, moderada pelo reitor da Universidade Federal de Jataí, Américo Nunes, está disponível no Youtube oficial da UFG.
O painel teve início com a exposição da professora Esther Solano, que fez a apresentação de sua pesquisa sobre as narrativas mobilizadas pelo presidente do Brasil e pelos bolsonaristas sobre a pandemia. De acordo com a pesquisadora, a parcela popular da população brasileira arrependida de ter votado no atual presidente, e até mesmo os mais fiéis seguidores do político, não concordam com a narrativa criada de que o vírus Covid-19 é uma mera “gripezinha”. “As pessoas estão com medo da doença e do contágio”, disse. Por outro lado, a narrativa construída em torno da dicotomia entre a saúde e a economia conquistou simbolicamente essa parcela da população. Segundo Esther Solano, a classe C e D acredita que o isolamento social “é um privilégio de quem tem dinheiro”. Ou seja, de forma “dramática”, há a percepção de que “o isolamento é um privilégio e não um direito”.
Outro aspecto identificado pela pesquisa da professora e analisado por ela como positivo é a falta de consenso, entre os eleitores, sobre as medidas neoliberais do governo. “Inclusive os bolsonaristas mais fiéis, nessa base popular, dizem que o SUS é importante e prioritário, uma conquista do povo, e não faz sentido privatizar”, afirmou. Isso significa, segundo a pesquisadora, que as pessoas que votaram no atual presidente, das classes populares, não estão concordando com a agenda privatista e neoliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes. Na mesma linha, o auxílio emergencial ganhou, com a pandemia, um patamar importante no debate público. Nesse sentido, agora, “a população está pronta e preparada para pensar numa renda mínima”, política social defendida há uns anos pela esquerda brasileira.
Como reflexão, Esther Solano levanta uma provocação ao campo progressista e democrático do Brasil: é preciso restabelecer o diálogo e a conexão com a classe popular do Brasil, “porque definitivamente mais vai sofrer” com a crise e pós-crise pandêmica. Nesse sentido, o lema do “fique em casa” deve vir junto com a cobrança de medidas econômicas e da intervenção do Estado, via auxílio emergencial e políticas de geração de renda e emprego. “Ficar em casa não é um privilégio, é um direito e deve vir acompanhado de políticas públicas, do Estado, e de geração de renda e emprego”. Na mesma direção, o campo democrático deve abandonar o linguajar rebuscado para saber se comunicar com essa parcela da população. O atual presidente, segundo a pesquisadora, “consegue falar de um jeito simples. O problema do campo progressista é a retórica elitista que não alcança a parcela empobrecida”.
Matrizes do fascismo no Brasil
O pesquisador e líder indígena, Ailton Krenak, iluminou para o fato de a narrativa preponderante da sociedade brasileira ser ainda aquela construída no Brasil colônia. Para nós, “riqueza é aquilo que os colonos, os colonizadores, trouxeram para as nossas praias”. Trata-se de uma narrativa que historicamente exclui parte da sociedade. Segundo Ailton, há bastante tempo vem sendo realizada uma campanha contra os direitos indígenas e pelo extermínio dos povos e territórios. E, questiona, onde estava o campo progressista, o campo democrático, nos constates ataques ao território indígena do Brasil, pelos setores do agronegócio e da mineração, por exemplo? “Mutas pessoas, inclusive nas nossas instituições de ensino superior, se omitem a esse debate, e parece que existe uma certa conveniência de que a ideia do desenvolvimento alcance todas as fronteiras”, disse.
Segundo o pesquisador, uma das imagens mais gritantes foi o que ocorreu com a terra indígena do Xingu, que teve o seu ecossistema extraído pelo agronegócio e se limitou a uma pequena ilha rodeada de agronegócio por todos os lados. “Onde estavam os brasileiros, de um campo ou de outro, quando um genocídio desse é projetado, executado com recursos públicos, com o aparato do Estado?”, questiona. Para além dos trabalhadores, é preciso o comprometimento com parte da população invisível e que segue invisível no Brasil, alerta o líder indígena. “Ela entrou invisível no século XXI e, se não prestarmos atenção, ela vai ser agora exterminada por uma ação dirigida do governo brasileiro de extinguir os territórios indígenas”, afirmou.
A narrativa oficial, assim como explica Ailton Krenak, especialmente sobre a Amazônia, inviabiliza a realidade dos povos de darem conta de seu próprio projeto de sociedade, de permanecer em seus territórios, com suas próprias cosmovisões, culturas, com suas próprias ideias do que é uma economia, com suas ideias do que é, inclusive, riqueza. E, mais, criminaliza o que considera um empecilho ao dito progresso. “Qual a possibilidade de entender que agora e no futuro, os povos originários vão estar disputando narrativas com a colonialidade? Com a mentalidade que se instalou aqui nos trópicos a partir da ideia de civilizar outros povos”. Segundo pesquisador, “nós temos várias matrizes desse pensamento fascista que habita hoje o Brasil”, ele tem base sólida e histórica.
Sem a presença das agências do Estado que deveriam estar atuando na defesa dos territórios diante da invasão garimpeira e diante da disseminação da Covid-19, “os povos indígenas estão pagando agora com centenas de vidas”, afirmou o pesquisador. “Estamos sendo atacados pela pandemia e pela violência do Estado”. E questiona: “Não sei o que podemos demandar para o Estado, na medida em que ele está dominado. Ministérios da Saúde, Educação, do Meio Ambiente e a própria Funai têm atuado contra os interesses indígenas”.
Cobertura midiática da pandemia
Por sua vez, o jornalista e professor Juarez Xavier, durante o painel, apresentou sua pesquisa de análise da cobertura jornalística sobre a pandemia, a partir das categorias da “perversidade, fabulação e possibilidades”. A primeira, classificada como nacronarrativa, diz respeito àquela narrativa jornalística que, de alguma forma, justifica a morte, seja pela sua inevitabilidade durante uma pandemia, seja pela comparação com outros tipos de mortes (como a fome, outras enfermidades e violência), ou pelas mentiras de acobertamento dos números de óbitos, de divulgação de medicações ineficientes e de orientações contrárias aos órgãos de saúde.
Um outro aspecto observado pela pesquisa foram as fabulações jogadas no debate público como um balão de ensaio, no sentido de inflar uma determinada realidade para ver “a aceitação de tais absurdos” no debate público, como ocorre com os ataques às instituições democráticas. Mas, no caso da pandemia, as fabulações ocorreram no sentido da suposta ação democrática do vírus; da pandemia ser uma dentre outras já enfrentadas no século XX e XXI; e na ideia de que tudo vai voltar ao normal, “sem levar em conta que esse normal é uma estrutura montada, patriarcal capitalista e supremacista branca”.
No terceiro eixo de análise, a pesquisa se direcionou a pensar quais foram as possibilidades que se apresentaram no atual contexto e identificou a emergência das mídias radicais nas comunidades periféricas; das ações coletivas e comunitárias de solidariedade, que montaram batalhões de enfrentamento à pandemia; e também a emergência da mídia baseada em práticas ancestrais, nas comunidades de terreiros, nas comunidades remanescentes quilombolas, são as mídias que buscam gerar possibilidade de sustentação da comunidade.
Segundo o professor Juarez Xavier, na pós-pandemia, precisa-se que a frende democrática compreenda que dentro do atual modelo de Estado é fundamental modificar a chave do genocídio. “É inaceitável que continuemos passivos diante da morte de 55 mil pessoas de homicídio, onde 85% são jovens negros. É preciso ter uma pauta que rompe com o genocídio e o racismo estrutural para novas relações humanas”, afirmou.
Fonte: Secom
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