Diferentes margens de uma diáspora em encontro na UFG
Décima edição da Semana da África promoveu debates, oficinas e atividades culturais sobre a modernidade e a tradição na África contemporânea
Texto: Mariza Fernandes e Gustavo Motta
Fotos: Mariza Fernandes e Giovana Paula Correia
Entre os dias 29 de maio e 2 de junho, está sendo realizada, na Universidade Federal de Goiás (UFG), a décima edição da Semana da África. O evento, que ocorre na instituição desde 2008, é organizado por estudantes intercambistas de países africanos, sempre com o apoio do Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-raciais e espacialidades (LaGENTE). A proposta é celebrar o Dia de África (25 de maio).
Neste ano, a Semana foi realizada em colaboração com a PUC Goiás e com o Laboratório de Pesquisas em Educação, Química e Inclusão (Lpeqi/UFG). A atividade se consolidou como um espaço de troca de conhecimentos e construção de novas formas de olhar para o continente africano.
Uma das principais bandeiras do grupo organizador é fazer com que os brasileiros entendam que a África é diversa e possui muitas riquezas, não apenas culturais como também econômicas, além de ser local de origem de muitos conhecimentos que hoje são aplicados no mundo inteiro.
A semana é composta por atividades como palestras, rodas de conversa, oficinas de tranças e danças, atividades esportivas e uma festa que apresenta as variedades gastronômicas e culturais do continente. O tema desta edição é “A modernidade e a tradição na África Contemporânea”.
Presidente da Comissão Organizadora da Semana da África, Pavel Quade
“Talvez, enquanto povos que coabitam lugares de múltiplos estilos, peculiaridades e algumas complicações pós-colonização, tenhamos algo a falar sobre muitas das tradições africanas e afrodescendentes modernizadas; da descontinuidade de hábitos e costumes; ou ainda de práticas culturais que suprimimos dos grupos étnicos em prol da inserção de aprendizados externos. Afinal, a dicotomia tradição/modernidade não existiu sempre, e nem sempre se refere a um produto natural”, afirmou o presidente da comissão organizadora do evento, Pavel Quade. O organizador, que é estudante de Odontologia e oriundo de Guiné-Bissau, reforça que a iniciativa recebe a todos, independentemente de cor, credo, e orientação sexual.
Mesa de abertura
Realizada na noite de terça-feira (29), a mesa de abertura do evento contou com a presença de representantes de diversos grupos e instituições que colaboraram para que a Semana da África pudesse acontecer. O pró-reitor adjunto da Pró-reitoria de Graduação da UFG (PROGRAD), Israel Elias Trindade, destacou a importância do engajamento dos estudantes na realização da atividade.
“Sem dúvida, esse evento proporciona uma integração da comunidade brasileira com a comunidade africana, o que fortalece o projeto de internacionalização da Universidade”, afirmou Israel.
Da esquerda para a direita: Pró-reitor adjunto de graduação da UFG, Israel Elias Trindade; representante da Coordenação de Inclusão e Permanência da UFG (CIP), Suzane Vieira; representante da Coordenadoria de Ações Afirmativas da UFG (Caaf), Marlini Dornelles e coordenadora do evento, Juliana Ramalho (IESA-UFG).
A Coordenadora de Inclusão e Permanência da UFG, Suzane Vieira, afirmou que, atualmente, existem mais de 30 estudantes do continente africano que estão na UFG por meio do Programa de Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G). A coordenadora destacou que, além de atender aos alunos, a UFG está desenvolvendo uma Resolução para criar condições de prestar assistência aos refugiados africanos que estão em Goiás, mesmo não sendo estudantes da instituição.
Homenagem
Um dos pontos altos da noite de abertura foi a homenagem, prestada pelos estudantes africanos, ao professor Alex Ratts, coordenador do LaGENTE, que ajuda a organizar e promover a Semana da África desde a sua primeira edição. O mestre de cerimônia do evento, Abdul Muchingeca, fez a leitura do texto de homenagem, que destacava a importância do apoio do professor do Instituto de Estudos Socioambientais da UFG (IESA).
“Das vossas reuniões, das quais muitas pessoas fora da Casa de Estudantes também experimentaram, surgiu esse belíssimo evento. Na ocasião, sabemos, faltava tudo e mais alguma coisa para a expansão e consolidação do mesmo para a comemoração da unidade africana e seus descendentes e simpatizantes em terras além mar. Professor Alex, o nosso muito obrigado pela aproximação, convívio, partilha e, mais do que isso, afeto”, afirmou.
O Professor Alex Ratts (LaGENTE-UFG) foi homenageado durante o evento
Na noite de abertura, foram lembrados ainda os estudantes africanos que, ao logo dos últimos dez anos, contribuíram para a realização da Semana da África. A Semana de África foi idealizada em 2009 por estudantes africanos em Goiás.
“Aproveito para cumprimentar - Malam Djassi, Joela Alves Bandica, Swazilene Cady do Rosário Correia, Morgan Tshipamba Nganga Mayoyi, Daniel Arthur Nnang Metogo, Helnicárdia Jesoíana Barreto Évora, Christian Kalombo Mudiany, Francisco João Mendes, Benvinda Routte Lamba, Jordão Te – considerados mentores dessa história, com a necessidade de dar corpo às ideias e oficializar o projeto na UFG, procuraram o professor Alex Ratts, que prontamente se predispôs a colaborar – nascia então a Semana da África”, lembrou Pavel Quade.
Conferência de abertura
A programação de abertura da Semana da África também contou com uma conferência, ministrada pelo Prof. Dr. Alex Ratts. O tema da conferência foi “A Semana da África no coração do Brasil – tempos e espaços das diásporas antigas e resistentes”.
O professor abordou diversos temas. Entre eles, a necessidade de se criar novas formas de olhar para o continente africano. Alex Ratts fez uma analogia com o trabalho do artista queniano Cyrus Kabiru, que cria diferentes tipos de óculos com materiais encontrados no lixo.
“Nem sempre houve África”, destacou Ratts, chamando a atenção para o fato de que a ideia que se tem do continente é uma criação eurocêntrica. Ao abordar o programa PEC-G, o conferencista fez uma crítica à cláusula que obriga os estudantes a retornarem ao país de origem após a conclusão do curso e destacou a experiência de racismo vivida pelos intercambistas aqui. “No Brasil, o estudante torna-se negro”, afirmou. O evento de abertura da Semana da África contou ainda com uma apresentação de um grupo de dança.
Mesa redonda sobre literatura africana estabelece diálogos sobre a realidade de quem veio do outro lado do Atlântico
Leitura, apresentação e ressignificação de obras. Com esse intento, a Semana da África integrou, em sua programação, uma mesa redonda sobre literatura africana, que contou com a participação de jovens nascidas no continente. O encontro ocorreu na última quarta-feira (30), às 14 horas, no edifício do Núcleo de Pesquisa e Ensino das Ciências, da Universidade Federal de Goiás (Nupec/UFG).
Participaram da mesa, as estudantes Luzia Nachilenga e Maimuna Tcham, respectivamente de Angola e Guiné-Bissau, que apresentaram obras literárias sobre o cotidiano da comunidade africana. Os debates foram intermediados por Cadija Jaló, originária de Guiné-Bissau, com participação da professora Janira Sodré Miranda, da PUC-Goiás.
Convidadas debatem cotidiano dos povos africanos, com base em obras literárias. Na foto, Maimuna Tcham (esquerda), Luzia Nachilenga (direita), e a mediadora, Cadija Jaló.
O encontro permitiu o compartilhamento de vivências, e o debate sobre os contextos políticos e sociais das nações africanas, com base em representações literárias. Luzia Nachilenga apresentou a obra “Hibisco Roxo”, da nigeriana Chimamanda Adichie. Publicado em 2003, o livro destaca a influência do rigor católico de um pai sobre o ambiente familiar da protagonista, e como a intolerância religiosa destrói relações entre os entes domésticos.
Luzia destacou como a influência do cristianismo, enquanto marca da colonização, é presente na realidade das famílias africanas. Junto à intolerância religiosa, o livro esboça como esse fenômeno caminha junto à desigualdade de gênero no ambiente familiar. “Em muitos lares, o patriarca é visto como o dono de todo o conhecimento, a quem não posso, ao menos, dirigir a minha voz, os meus desejos, as minhas opiniões”. Além disso, a jovem denunciou que as mulheres africanas têm sido legadas, exclusivamente, ao ambiente doméstico.
“Por outro lado, quando cheguei ao Brasil, me deparei com uma realidade profundamente diferente, onde as pessoas têm autonomia e liberdade para dizer o que pensam”. A estudante lamenta que o silenciamento do espaço domiciliar seja reproduzido na vida pública, devido à presença de regimes autoritários e corruptos, em muitos dos atuais países africanos. “Infelizmente, tivemos de lidar com políticos que pouco se importavam com a miséria de nosso povo”, concluiu.
Escravidão
Maimuna Tcham, originária de Guiné-Bissau, apresentou “O Caminho de Casa”, lançado em 2016. O livro foi publicado como estreia de Yaa Gyasi, autora nascida em Gana e naturalizada nos Estados Unidos. A obra mostra as consequências do tráfico de escravos na separação de famílias, ao acompanhar, desde o século 18, a trajetória de duas irmãs, que se desconhecem. A narrativa acompanha a descendências dessas mulheres até a atualidade.
“Essa trama acompanha sete gerações, de uma família nos Estados Unidos, e de outra que fica em Gana”, disse a jovem. Um dos destaques do livro é a possibilidade otimista de reencontro entre gerações separadas, “tanto pelo desejo de um rapaz estadunidense conhecer as suas origens em Gana, quanto pelo sonho de uma moça do país africano estudar no outro lado do Atlântico”, adicionou a professora Janira Sodré.
Maimuna destacou a importância de narrativas como essa, para “se conhecer a história dos negros, mesmo em seu quadro de dores, separações e sofrimentos”. Apesar das obras apresentadas tenham sido escritas para adultos, a convidada acredita que autores da área literária precisam aprofundar esse tema com o público infantil. “É necessário trabalhar a memória, a identidade, as raízes; e a própria história, sem traumatizar as crianças”.
A obra dialoga com as realidades, tanto daqueles que permaneceram na África, quanto daqueles que se originaram pela imigração dos povos africanos às Américas, conhecida coma “diáspora africana”. Uma das principais possibilidades da mesa redonda foi o encontro e a troca de ideias entre jovens de ambos os contextos – as estudantes nascidas no continente, e jovens negros brasileiros.
Diáspora
O debate promovido após a apresentação dos livros levou em consideração as realidades distintas, dos negros brasileiros, e do povo africano. “Existem muitas noções incorretas a nosso respeito”, lembra Luzia, ao afirmar que viu um leão, pela primeira vez, no zoológico de Goiânia, o que arrancou risadas do público. “As pessoas pensam que só porque você vive na África, deve ter visto um leão”, indagou a convidada, que logo retomou o tom sério da discussão.
Público formado por brasileiros e africanos conversou com as convidadas sobre as diferenças em realidades cotidianas
“Nós vivemos sob contextos muito diferentes e, por isso, temos pautas distintas, mesmo que possamos compartilhar necessidades em comum”. A jovem de Angola lembrou que muitas pessoas, mesmo sendo negras, não concordam com todas as pautas apresentadas, por diferentes motivos religiosos ou ideológicos. Maimuna, por sua vez, acredita que fins comuns podem ser estabelecidos por meio da troca de conhecimentos entre todos aqueles que compõem a população negra no mundo.
“As vivências dos negros ao redor do mundo apontam que o racismo, como exemplo comum, é um alvo a ser derrubado”, ressaltou. A exemplo de pautas específicas, e partindo da deixa apresentada por Luzia a respeito do leão, a convidada destacou a necessidade de se desmistificar estereótipos, entre aqueles que vivem neste lado do oceano, sobre os povos africanos.
Futebol e festa
Na sexta-feira (1), as atividades da Semana da África foram uma oficina sobre as tranças africanas e a etapa final do torneio de futebol. Como já se tornou tradição, a Semana foi encerrada com uma festa no sábado (2), em que foram apresentados vários elementos das culturas africanas, como comidas, músicas, danças e vestimentas de diferentes países.
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